O escritor e grande romancista José Saramago faleceu sexta-feira, 18 de Junho de 2010, pelas 12.30h quando o Sol raiava em sua casa da Vila de Tias, na ilha de Lanzarote, Espanha, com 87 anos de idade.
Nasceu na aldeia de Azinhaga, concelho da Golegã, ao dia 16 de Novembro de 1922.
A sua vida não foi fácil. Inteligente, fez o ensino secundário mas não pôde continuar a estudar, devido às dificuldades económicas da família. Então, bem cedo começou a trabalhar. Primeiro como serralheiro mecânico, depois desenhador, funcionário dos serviços de saúde e da previdência social. Posteriormente e sempre em ascensão, foi editor, tradutor, jornalista e crítico político, fiel ao Partido Comunista.
Publicou o seu primeiro livro “Terra do Pecado” em 1947.
Fez parte da 1ª direcção da Associação Portuguesa de Escritores. De Abril a Novembro de 1975, foi director adjunto do “Diário de Notícias”. A partir de 1976, dedicou-se exclusivamente a um contínuo trabalho literário, totalizando 16 romances. Toda a sua bibliografia é fabulosa. Destacam-se "Levantado do Chão" / 1980, "Memorial do Convento" / 1982, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" / 1991, mas também “Jangada de Pedra” e “Ensaio sobre a Cegueira” ou “Gente Feliz com Lágrimas”, entre muitas outras, sempre pela Editora Caminho.
Dedicado aos mais jovens, publicou “A Maior Flor do Mundo” em 2001.
Escritor de grande talento, na sua brilhante carreira viria a receber inúmeros prémios em Portugal, bem como em Itália e Inglaterra e ultimamente em Espanha, onde vivia e era considerado genial. Recebeu ainda o Prémio Camões, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores em 1995.
Mas o seu grande prémio foi em 1998, na Suécia, ao ser galardoado mundialmente com o Prémio Nobel da Literatura, que muito honra os Portugueses.
Nestes últimos dias da sua vida, doente e bastante debilitado, ainda escrevia e já tinha mais de 30 páginas do futuro romance...”Alabardas...” que infelizmente já não tem fim.
É uma grande perda para a Literatura Portuguesa, não só por ser referência cultural, mas pela diferença de ideologia que deixava ao mundo nos seus escritos, a sua imaginação e dom para criar e acima de tudo a frontalidade, repartida em brilhantismo e polémica.
Portugal está dois dias de luto por José Saramago e quisemos deixar também a nossa homenagem.
Aqui deixo breves excertos do seu polémico romance CAIM
Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala.
(Hebreus, 11, 4) LIVRO DOS DISPARATES
Quando o Senhor, também conhecido como Deus, se apercebeu de que a Adão e Eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, Eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo Senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser.
Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o Senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a Adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou Adão, teu primogénito, Senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher: E tu, como te chamas tu? Sou Eva, senhor, a primeira-dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o Senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal até logo, e foi à sua vida.
Então, pela primeira vez, Adão disse para Eva: vamos para a cama.
(...)
Carregando sobre os ombros as fedorentas peles, bamboleando-se sobre as pernas trôpegas, Adão e Eva pareciam dois orangotangos que pela primeira vez se tivessem posto de pé. Fora do jardim do éden a terra era árida, inóspita, o Senhor não tinha exagerado quando ameaçou Adão com espinhos e cardos. Tal como também havia dito, acabara-se a boa vida.
A sua primeira morada foi uma estreita caverna, em verdade mais cavidade que caverna, de tecto baixo, descoberta num afloramento rochoso ao norte do jardim do éden quando, desesperados, vagueavam à procura de um abrigo. Ali puderam, finalmente, defender-se da queimação brutal de um sol que em nada se parecia com aquela invariável benignidade de temperatura a que estavam habituados, constante de noite e de dia, e em qualquer época do ano.
Abandonaram as grossas peles que os sufocavam de calor e mau cheiro, e regressaram à primeira nudez, mas, para proteger de agressões exteriores as partes delicadas do corpo, as que andam só mais ou menos resguardadas entre as pernas, inventaram, utilizando as peles mais finas e de pêlo mais curto, aquilo a que mais tarde virá a chamar-se saia, idêntica na forma tanto para as mulheres como para os homens.
Nos primeiros dias, sem terem ao menos uma côdea para mastigar, passaram fome. O jardim do éden era ubérrimo em frutos, aliás não se encontrava lá outra coisa de proveito, até aqueles animais que, por natureza, deveriam alimentar-se de carne sangrenta, pois para carnívoros vieram ao mundo, haviam sido, por imposição divina, submetidos à mesma melancólica e insatisfatória dieta. O que não se sabia era donde tinham vindo as peles que o senhor fizera aparecer com um simples estalar de dedos, como um prestidigitador. (...)
CAIM – José Saramago