O Natal do Pastorinho
Serra acima, procurando evitar os tojeiros que lhe farpeavam os pés descalços dum roxo denegrido ou saltando de fraga em fraga com o auxílio do cajado, o Zé Enjeitado avançava seguido dócilmente do do rebanho. Era uma escassa dezena de ovelhitas que lhe tinham sido confiadas desde que, falecida a pobre mulher que o criara, o Tomé Ferrador o tomara ao seu serviço. «Que o cachopo calhara mal », era voz corrente no lugarejo: o ferrador não era dali, viera Deus sabe de onde; a mulher, se bem que menos enfarruscada, nem por isso tinha aspecto de mais asseio: a filha única - que ela pretendia educar «à fina» - era insuportável de vaidade e arrogância.
A tarde vinha já caindo e o pastorinho continuava a subir afastando-se do povoado. Na sua cabecita de dez anos, amadurecidos pela miséria e a solidão, atropelava-se um mundo de ideias. Porque era ele enjeitado quando todos tinham família?... Porque sofria fome quando a terra era tão grande e dava tanto pão?... Porque passava frio se havia tanta ovelhinha pela serra?... Porque não haviam os homens de repartir entre si?... Porque não morrera ele com a boa mulher a quem dava o doce nome de mãe?...
Morte... Vida...
Que significado teriam para o pastorinho estas duas palavras?
Morte... era o Céu?... Quem sabe... Da vida, porém, tinha ele bem clara noção: era a miséria, o sofrimento, o abandono.
Uma ansiedade imensa - nem ele sabia porquê - fazia-lhe bater desordenado o coração. A fadiga começava também a fazer-se sentir imperiosa, mas o pastorinho trepava sempre, descuidado das ovelhas que íam ficando para trás desgarradas.
Queria subir até à ermidinha branca cuja torre miniatural se avistava já contra a abóbada infinita dum tom de chumbo violáceo.
A atmosfera estava de facto carregada e não tardou muito que um relâmpago rasgasse o horizonte e logo se ouvisse o ribombar do trovão.
O Enjeitado assustou-se. Estava em pleno descampado, não se avistava sequer a mais humilde choupana. De novo se voltou para a ermidinha que o esfuziar do raio, agora seguido, parecia querer aniquilar.
A tempestade avançava rápida sobre a terra. Um trovão mais forte, que dir-se-ía abalar o solo até às entranhas, desorientou de todo o pequeno rebanho que abalou serra abaixo em busca do aprisco. E a água começou a cair e, logo em bátegas cerradas, fustigava e alagava tudo.
O pastorinho, a princípio, agachou-se junto dumas moitas, disposto a aguardar que o temporal passasse; mas pouco depois murmuradas algumas orações, que o povo por ali tinha inventado ou estropeado, obcecado pela ideia de alcançar a ermida tanto mais que naquela altura seria o abrigo mais próximo, lançou-se impetuoso na sua direcção.
As ovelhas não lhe davam cuidado: sabiam o caminho; e ele quase agradecia à Providência, embora a bem dizer por instinto, o motivo que lhe enviava de não voltar nesse dia para casa do Ferrador. De resto, seria para ficar sózinho, no curral, pois que lhe ouvira combinar, com a mulher e a filha, irem passar essa noite e o dia seguinte à cidade.
Noite de Natal... Dia de Natal...
Consoada... Missa, a linda «Missa do Galo», tudo isso acabara para ele - para sempre - com a morte da mãe adoptiva. Pois bem! Iria passar a sua noite de Natal à ermidinha, sob o pequenino alpendre que as heras, revestindo as pilastras e içando-se até ao telhado, tornavam ainda mais aconchegadinho.
E era forçoso que chegasse com dia para, pelo ralo da porta, consolar-se com a vista daquele quadro tão belo, por cima do altar, a representar Nossa Senhora com o Menino nos braços, e em jeito de lhO oferecer.
Quantas vezes, então, ela cerrava os olhos, cruzava as mãos abertas como a Senhora, e quedava-se com a sensação de ter ali o Menino e sentir contra o peito o calor do seu corpinho...
Mais um esforço, mais alguns passos, e o Zé Enjeitado atirava-se para dentro do minúsculo átrio da capelinha, enlameado, escorrendo por todos os lados e quase desfalecido. Volveu, no entanto, o olhar para a rótula da porta... Tudo estava, lá dentro, negro como breu...
Deixou-se então cair na laje alagada e os olhos fecharam-se-lhe pesadamente. Um bem-estar indizível, inexplicável, apoderava-se dele por completo.
Dormiu?... Sonhou?...
Sonho ou visão?...
A porta da ermida abria-se e a Senhora, sempre com o Menino nos braços, vinha convidá-lo a entrar e passar com Eles a festa do Santo Natal...
Na tarde do dia seguinte um velho pastor que por ali costumava vaguear deu com a porta toda aberta e, estendido ao pé do altar, tendo nos lábios um sorriso de inefável felicidade, o corpo do pastorinho.
E em substituição do cheiro a mofo que habitualmente emanava o interior da ermidinha, o perfume penetrante, delicioso das açucenas...
Autora: Maria de Freitas